1977 - Bicho



1. Odara
(Caetano Veloso)

2. Two naira fifty kobo
(Caetano Veloso)

3. Gente
(Caetano Veloso)

4. Olha o menino
(Jorge Ben Jor)

5. Um índio
(Caetano Veloso)

6. A grande borboleta
(Caetano Veloso)
7. Tigresa
(Caetano Veloso)

8. O Leãozinho
(Caetano Veloso)

9. Alguém cantando
(Caetano Veloso)
Comentários:
Acabada a excursão dos Doces Bárbaros, de novo, sozinho, recomecei a compor. E é principalmente das canções que surgiram nesse período que se compõe o repertório desse novo disco. A primeira que pintou foi a que veio a se chamar "Gente”. Fiz primeiro a música, pensando em colocar sobre ela uma letra qualquer. Depois de pronta eu achei louca. Hoje acho que “Gente” é uma canção linda e emocionante e louca como os Doces Bárbaros e a considero uma homenagem à experiência que os Doces Bárbaros foram para mim.

“Gente” ainda não estava de todo pronta quando fiz, sem pensar, a melodia do que veio a se chamar “Tigresa”.
Algumas pessoas estavam conversando aqui na sala de som da minha casa e eu não estava a fim de prestar atenção na conversa delas. Fiquei tocando violão e assoviando e cantarolando qualquer coisa. Fui dormir sem planos de voltar a pensar nela, uma vez que meu projeto era compor canções doces e suingadas. Mas a música era linda mesmo e resolvi fazer uma letra. Mas não sabia o que dizer com as palavras, uma coisa que ficasse dentro do clima que já era para nós essa melodia. Mas também não quis forçar muito a cabeça.
Um dia estava com Moreno vendo um seriado na televisão no qual apareciam uns meninos indianos que andavam com um elefante e encontravam outro menino, que era selvagem e não sabia falar e reagia como um felino. Quando eles tentavam se aproximar do menino selvagem, um grande tigre vinha protegê-lo. O menino tinha sido criado por aquele tigre que, na verdade, era fêmeo. O fato é que pensei que tigre fêmeo diz-se tigresa, e aí estava a palavra. Dessa palavra parti para inventar uma letra que mantivesse o clima da música. Imaginei logo uma mulher e queria algo assim como uma história. Essa mulher foi se nutrindo de imagens de mulheres que conheço e conheci, e essa história foi se nutrindo das histórias que vivo.

Terminou pintando também um pouco de história, uma vez que o interesse que as pessoas da minha classe e da minha geração uma vez demonstraram pelo assunto política aparece datado. Mil pessoas me perguntam quem é a "Tigresa", ou para quem a música foi feita. Pois bem. Depois da mamãe tigresa da televisão, a primeira imagem de mulher que veio à minha cabeça foi a de Zezé Mota, e isso está bem evidente nas unhas e na pele. Mas terminei descobrindo que os olhos cor de mel são da Sônia Braga, embora não deixem de ter um parentesco com os cabelos da menina Maribel. Mas Bethânia e Gal já estavam lá. E Norma Bengell, Clarice, Claudinha, Helena Ignêz, Maria Ester, Silvinha Hippy, Marina, muitas outras meninas que eram bebês em 1966, Suzana e Dedé. Por fim a "Tigresa" sou eu mesmo. É minha primeira canção parecida um pouco com Bob Dylan.

Voltando ao projeto de músicas doces e suingadas, apareceu a melodia de "Odara", que é uma palavra que aprendi com o Waly Salomão. Digo que aprendi com o Waly porque foi ele que passou essa palavra para mim com o valor semântico que ela tem na letra da canção. Claro que já tinha ouvido na voz de Clara Nunes num desses sambas sobre religião negra. Também nos ambientes de candomblé essa palavra é usada. Mas não sei exatamente em que sentido. Em Itapõa, “odara” quer dizer bom, bonito, bacana. Quando comecei a gravar o disco, estava convencido de que “Odara” era a mais bonita das canções que eu tinha feito ultimamente. Até hoje não encontrei bons argumentos em contrário.

Fiz "Leãozinho"para Dadi. Gosto de chamá-lo de Leãozinho porque ele é um lindo menino do signo de Leão, que é também o meu signo. Disse a ele : “Vou fazer uma música para você”. Aí comecei a fazer uma melodia em cima do título já escolhido. A letra saiu quase ao mesmo tempo que a música.

Sempre tive (e talvez tenha até hoje mais que nunca) a vontade de ampliar o repertório de possibilidades sonoras dentro do campo de criação de música popular no Brasil. Quando musiquei “Triste Bahia”, escrevi a Augusto de Campos: “Quero que o resultado pareça ao mesmo tempo folclore e ficção científica”. A paixão compartilhada com Gil pela Banda de Pífaros de Caruaru, desde 1967, era a expressão dessa vontade. A gravação londrina de “Asa branca” foi um primeiro esforço de concentração no sentido de realizar algum som a mais. O ‘Araçá azul’ – depois da música para o filme “São Bernardo” de Leon Hirszman – foi o luxo de entrar no estúdio sem nada e deixar esse desejo fluir para que eu, assim, pudesse testá-lo. O nordestino fanhoso, o roqueiro distorcido, os Smetaks, o insólito – tudo isso é a minha identificação. A letra para a pipoca moderna. O chinês, o japonês, o baiano. Havia planejado fazer muito sons “de índio”. Queria fazer um disco de canções doces com suingue e queria trabalhar em casa uns sons “primitivos”.

Assim, sobre uns sons de assovios superpostos que eu havia armado aqui, procurei colocar umas palavras e usei como tema ou pretexto um desenho que tinha feito com lápis de cor e que veio a ser escolhido depois por mim para ser a capa do disco. A música se chamou “A grande borboleta”.  

"Two Naira Fifty Kobo" foi o apelido que o pessoal deu ao motorista que trabalhava pra gente em Lagos. Ele ouvia música dia e noite. É uma figura inesquecível. Fiz uma melodia em Lagos mesmo, sentindo o clima das músicas que ouvia por lá. Quando cheguei à Bahia, depois do carnaval, fui pondo as palavras que, afinal, ficaram tão bonitinhas. "Two Naira Fifty Kobo" é a minha canção da Refavela.

“Frases” foi a primeira música de Jorge Ben que me impressionou profundamente. Achava tudo aquilo que veio antes muito lindo e agradável, mas “Frases” me impressionou em 1966. Bem antes do tropicalismo. Acho que essa foi uma composição inaugural da nova poesia de Jorge Bem, da nova poesia brasileira. E agora eu a gravei.

O disco chama-se "Bicho". Principalmente por causa do desenho que escolhi pra capa. Eu já tinha feito esse desenho e o achava bonito. Quando fui olhando para o repertório que gravaria, vi que tinha muitos nomes de animais envolvidos. Aí pensei em qualquer coisa de animal, Guilherme Araújo me disse: "Esse seu disco será um jardim zoológico". Eu olhava para o desenho daquela borboleta astral e pensava: "Bicho da vida, esse é o bicho da vida". Quase coloco o nome do disco de "Bicho da vida". Depois reduzi pra "Bicho". Achei mais sintético, menos retórico.

Acredito que o fato dos músicos brasileiros se tratarem, uns aos outros, de bicho, e também o fato da palavra estar em toda caricatura que se faz de hippy nas novelas e nos humorísticos da televisão, e também ser nome de jornalzinho de cartoon e comics, tudo isso se enriquece com esta minha redescoberta da palavra que, por sua vez, sai também enriquecida de tudo isso. Palavra gasta, palavra intacta.  
Caetano Veloso - Jornal do Brasil, 07/1977
Opinião da casa:

É um grande disco e dos preferidos de Caetano.
Vejo muita força nessas canções, por isso gosto da maioria das músicas do disco, implico com alguns arranjos, mas nada demais. É solar, dancing, anti-patrulha (Caetano comprou altas brigas à época por isso).
 "Odara", "Two Nara Fifty Kobo" e "O leãozinho" - todas ganharam releituras excelentes na voz do próprio Caetano, porém estão muito boas aqui no disco. 
"Tigresa", uma campeã de regravações (Ney Matogrosso em "Pecado"; Gal em "Caras e Bocas" e Bethânia em "Pássaro da Manhã", todos de 1977), também teve uma releitura importante do próprio Caetano em 2001, assim como "Gente" que é linda.
"Alguém cantando", aqui cantada pela irmã de Caetano, Nicinha, dá um toque especial pro fim disco (e foi pescada por Simone e Zélia Duncan em 2008, no projeto "Amigo é casa"). 

4 comentários:

Unknown disse...

Para enriqucer seu texto, ALGUÉM CANTANDO, antes de Simone e Zelia usarem na abertura do show delas, GAL COSTA usou a mesma canção na abertura do show TODAS AS COISAS E EU, em 2004. abç

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito bom o disco.

Sofia disse...

O 4shared apagou o albúm do Bicho, não da para baixá-lo!

yuri disse...

Um dos discos mais lindo de Caê.