2000 - Noites do Norte

 1. Zera a reza
(Caetano Veloso)

2. Noites Do Norte
(Caetano Veloso, Joaquim Nabuco)

3. 13 de Maio
(Caetano Veloso)

4. Zumbi
(Jorge Ben Jor)

5. Rock'n'Raul
(Caetano Veloso)

6. Michelagelo Antonioni
(Caetano Veloso)

7. Cantiga de boi
(Caetano Veloso)

8. Cobra coral
(Caetano Veloso, Waly Salomão )

9. Ia
(Caetano Veloso)

10. Meu Rio
(Caetano Veloso )

11. Sou seu sabiá
(Caetano Veloso)

12. Tempestades solares
(Caetano Veloso)


Comentários:  
Você costuma dizer que se interessa pelo processo de criação a partir da palavra cantada, como se letra e música fossem uma unidade. Em “Noites do Norte” existe um trabalho conceitual muito forte que parece partir da palavra escrita (Joaquim Nabuco) ou a partir do som (o trabalho com a percussão). Como foi o processo  de gestação desse
disco?

Caetano
– Meu plano inicial para o disco que terminou se chamando “Noites do Norte” era trabalhar a partir da combinação de voz e percussão. Queria fazer um disco mais de sons que de canções. Portanto, não estava pensando em partir da palavra cantada. Mas o livro de Joaquim Nabuco caiu em minhas mãos e eu não pude deixar de musicar aquele trecho sobre a escravidão. Daí voltei às canções: fiz “13 de Maio” e “Cantiga de boi”; decidi regravar “Zumbi” de Jorge Benjor e a 
minha.
“Sou seu sabiá”; enfim, voltei à palavra cantada (digo que sou escravo das canções). Mas os experimentos de voz e percussão permeiam todo o disco e lhe dão o sabor. Um sabor que é feito da tensão entre essa doce
escravidão às canções e alguma liberdade tateante.
“Noites do Norte” é um disco muito variado, em gêneros, em registros, em sonoridades, em temas. Isso foi uma busca ou é resultado de um trabalho que aponta simultaneamente para diferentes alvos? Isso tem a ver com a sua idéia de fazer música com “uma visão de cineasta”? 
Caetano – Cineasta, sim. “Noites do Norte” é, de fato, variado, mas muitos dos meus discos o são. Acho que isso se deve ao fato de que viso alvos diferentes ao mesmo tempo, mas também à idéia de que várias coisas diferentes justapostas podem criar uma unidade em outro nível, como na montagem cinematográfica. Sempre penso o disco como um filme. O mesmo posso dizer dos meus shows: são como um filme para mim.
Entrevista a Violeta Weinschelbaum, 2001


Zera a Reza
Eu ia fazer esse disco e só pensava nos sons, não pensava nas músicas. Fui ao estúdio procurando sons e queria começar com a voz. Mas desde que tive uma ligeira gripe, decidi começar com "Zera a Reza", que eu já queria fazer com vozes sobrepostas. Eu decidi gravar primeiro a bateria e colocar a guitarra no topo. Liguei para o Cleber, que é o baterista da banda Afro Reggae, da favela Vigário Geral, que toca hip-hop. Na época ele tinha 16 anos de idade. Eu queria colocar uma guitarra bossa nova / samba no topo do hip-hop.

"Zera a Reza" é uma música contra a religião, com gosto de festa. Eu fui influenciado alguns ouvindo um disco de D'Angelo, que se sobrepõe a várias vozes. Eu não sou musical o suficiente para fazer nada perto do que ele faz, mas há a presença disso. Eu tinha o desejo de misturar vozes sobrepostas, um tambor de hip-hop e um violão de samba de João Gilberto.

Noites do Norte
 Eu compus no violão, lendo o livro. Quando vi que tinha conseguido criar uma peça musicalmente coerente, contendo o texto sem cortes, fiquei muito satisfeito, e já pensava que queria que a orquestra viesse, mas submetida a um diálogo com alguma percussão pesada, o que cria uma tensão, contrastando com a orquestra. Eu também queria que a música tivesse algo da seresta brasileira, além da música clássica do século XIX, um pouco ligada à ópera.
Senti um pouco do mundo de Joaquim Nabuco, um estudioso brasileiro do século 19, e algo da música clássica brasileira considerada nacionalista.


13 de Maio
Princesa Isabel tem sido negligenciada como uma figura histórica, no desdobramento da abolição. Há muito tempo atrás, ela era uma figura cujo nome rapidamente me trouxe uma ideia forte, tanto que os racistas, quando queriam humilhar uma pessoa negra, diriam, comentando qualquer ato de uma pessoa negra: “Isso é culpa Princesa Isabel; a culpada é a Princesa Isabel ”. Era uma forma de falar usada com frequência no Brasil. Os negros de Santo Amaro comemoram a abolição ainda hoje em 13 de maio, mas desde a década de 1970, que vem mudando: fortemente influenciados pelo movimento negro norte-americano, outros negros colocam Zumbi no lugar da figura a ser venerada pelos brasileiros negros. A vela da princesa Isabel foi apagada. 

Concordo totalmente com a elevação de Zumbi a este lugar, mas sempre gostei da Princesa Isabel, e esse sentimento cresceu muito ao ler Joaquim Nabuco. Quis escrever uma canção sobre as festividades dos negros de Santo Amaro em 13 de maio. Antes de começar a fazer esse disco, meu filho Moreno acabara de fazer o dele. Eu achei tão lindo; as músicas, bem como a engenharia de som. Fiquei impressionado com o quanto ele sabia sobre isso - eu não sabia que ele sabia tanto - então pedi sua ajuda. "13 de Maio" é uma música em 5/4. Moreno fez de tudo: o arranjo, tocou toda a percussão, tocou a guitarra base, pediu ao Davi Moraes para tocar um solo de guitarra e ainda colocou um surdo em 2 ao longo dos 5.

Zumbi

No álbum, "Zumbi" vem logo após a música sobre a princesa Isabel. Esta é a única música no álbum que não é uma composição minha. É de Jorge Ben. Por sorte, ele é o compositor brasileiro mais regravado de todos no Brasil.

"Zumbi" tinha sido uma música importante para mim desde que apareceu pela primeira vez. Foi apresentado no show "Phono 73". Era novo; não tínhamos ideia de que aquela música existia. Foi a primeira vez que ele cantou. Eu estava na platéia e não conseguia acreditar. “Aqui onde estão os homens” - foi uma maneira de colocar as coisas! Há também frases que parecem ter sido retiradas de livros de história, nomes de países, de onde os africanos foram importados para serem escravizados. E aí tem aquela cena: “De um lado cana de açúcar / Do outro lado o cafezal / Ao centro os senhores sentados, / Vendo a colheita do algodão branco sendo colhida por mãos negras”, dando nomes ao brasileiro monoculturas, tudo dentro de uma paisagem. E dizendo “aqui onde estão os homens”. Nestes momentos considero Jorge Ben um grande poeta. Em seguida, repetiu: "Eu quero ver, eu quero ver, eu quero ver, quando Zumbi chegar." Quando ele disse isso, que coisa maravilhosa. Subi no palco e coloquei a cabeça aos pés do Jorge Ben. 
Esta colocação da possibilidade da chegada de Zumbi no futuro ... Isso é uma coisa linda, porque Zumbi ainda não chegou, a escravidão não foi embora ainda, a abolição ainda não terminou. 

Michelangelo Antonioni
Compus a música imaginando todos os elementos do arranjo, que dei ao Jaquinho Morelenbaum. Eu queria que fosse uma orquestra quase minimalista, mas dinâmica, como fizemos com "Cucurucucu Paloma" e outras coisas na Fina Estampa; mas em um determinado momento, naquele momento específico como está no disco, um baixo e um vibrafone entrariam. Como nos grupos de jazz moderno no início dos anos 60 e final dos anos 50, exatamente no período em que vi os primeiros filmes de Antonioni. Eu acho que soa como esses filmes: meio jazz, quarteto de jazz moderno. Eu escrevi as letras em italiano, que é uma língua que mal falo. 

Eu escrevi alguns versos, para ficar tudo correto. Eu os enviei para Antonioni, para que ele pudesse dizer se ele aprovava. Fiquei muito feliz em receber uma resposta dizendo que ele aprovou com entusiasmo, e aprovou o italiano.

Cantiga de Boi
Eu estava me prometendo escrever apenas músicas cujas letras eram diretas e muito inteligíveis, que eu mesmo sabia o que estava sendo dito. Nada como "Qualquer Coisa", que tem muitos jogos de linguagem, e eu não sei exatamente o que está sendo dito lá. Eu sei todo o significado, mas o texto não é explícito, não é lógico. "Cantiga do Boi" apareceu para mim irresistivelmente. 

Fui a um show de Margareth Menezes em Salvador durante o verão. Antes de cantar, o grupo Malê Debalê surgiu. Eles todos chegaram, nesta apresentação, com um CD amarrado às suas testas. O lado brilhante foi revelado, o que é iridescente, onde você vê o espectro de luz. Fiquei impressionado e saí de lá achando que era como uma forma de ornamentação folclórica. Lembrei-me de um boi do bumba-meu-boi que tinha espelhos em forma de círculo entre seus chifres. Lembrei-me de José Miguel Wisnik, seu filho Guile e de Vadim, que escreveu um artigo sobre a cidade e o boi em minhas músicas. Há boi em "Aboio", uma música da Tropicália 2. 
Eu disse: “Meu Deus, essa coisa voltando por causa dessa visão do Malê Debalê!” Mas deixei passar. Quando o carnaval chegou, eu estava assistindo ao bloco afro desfile no Campo Grande, e lá veio o Malê Debalê, o bloco inteiro, milhares de pessoas, todas com CDs na testa. Isso me emocionou tanto, que o CD e a música começaram a aparecer dessa maneira. Existem algumas imagens, algumas rimas que eu não queria fazer, rimas internas, algo que esteticamente eu queria rejeitar, mas eu não pude resistir, eu não pude controlar. 
Fiz tudo com rimas internas. Perde o significado, mas mantém a sensação. Acabei fazendo na gravação as mais belas experiências sonoras, com a Tamima tocando um trompete australiano feito de PVC. Eu também usei uma amostra da trilha sonora do filme Vidas Secas, o som do carrinho de boi passando. Eu dediquei a música para Zé Miguel, Guile e Vadim.

Cobra Coral
é um poema de Waly Salomão, que se encontra no seu livro de poemas Tarifa de Embarque. Eu amei esse poema. Quando vi, tive o desejo de colocá-lo em música. 

Liguei para Lulu Santos e Zélia Duncan para cantarem comigo. Também tinha chamado Marisa Monte, mas no último momento ela cancelou. De certa forma, era melhor, porque as três vozes - a minha, a de Lulu e a de Zélia - soam como as de três homens. Zélia pode cantar muito profundamente. É muito interessante que Lulu, Zélia e eu nos parecemos com um coro masculino. 
Escrevi o arranjo para trombetas. Eu não escrevi, porque não posso escrever música: eu ditei todas as notas para o Luiz Brasil. 

Ia
 é uma música totalmente bossa nova: lenta, estranha, uma canção de depressão, de tristeza. Eu ia tocá-lo apenas no violão, mas depois do "Rock 'n' Raul", tive a idéia de convidar o Pedro Sá também, com os sons e tons do rock and roll, e Domênico, que às vezes dobra o ritmo dos tambores. 

Parece que você está ouvindo drum-and-bass à distância.

Meu Rio
 é uma música sobre minhas lembranças do Rio de Janeiro, quando vim morar aqui aos 13 anos de idade. Eu vivi o ano de 1956, em Guadalupe. Este bairro foi então chamado de Fundação. A casa onde eu morava ainda está lá, de vez em quando eu vou para ver meus parentes, meus primos. Durante este período eu ia à Rádio Nacional para ver os cantores. Eu ia à cidade com minha Inha e ia com frequência a Niterói para nadar no Saco de São Francisco, que era o meu lugar favorito para ir à praia. Eu adoro Niterói ainda hoje. Então, essa é uma música sobre o Rio, "meu Rio" no sentido de que é o Rio como eu o vi. 

Liguei para o Dudu Nobre para tocar cavaquinho, um cavaquinho totalmente carioca para encaixar na música.

Sou Seu Sabiá
 é uma canção que escrevi para Marisa Monte. Ela gravou, muito bem, mas eu queria cantar no meu disco, para expor mais a sua melodia. No lugar de "Sou Seu Sabiá", quase cantei "Você Não Gosta de Mim", que Gal gravou. Já havia "Ia" e "Tempestades Solares", muita música que parece ter sido feita por um sujeito que sofre por amor, e seria mais uma, triste demais. Preferi gravar "Sou Seu Sabiá".

Tempestades Solares
 é uma canção de drama íntimo e amoroso. 

Diferentemente de Djavan e Chico Buarque, que disseram em entrevistas que suas músicas não tinham nada a ver com suas vidas, para ser sincero, eu quase poderia dizer o contrário: praticamente todas as minhas músicas são autobiográficas, e eu não posso dizer que "Tempestades Solares " é diferente. 
Fiquei animado com a gravação, porque eu ainda queria uma oportunidade para fazer o que eu tinha pensado em fazer no álbum, que era usar muitos vibratos, exageradamente, e conseguir sons estranhos da voz junto com a percussão e alguns violões. Pedi ao Luiz Brasil para tocar num estilo flamenco justificando ainda mais o vibrato.

Produção do disco

Na época da Outra Banda da Terra, não havia produtor. Para Noites do Norte, era o mesmo, exceto que eu produzo mais do que produzi na época. Eu decidi mais como eu queria que as coisas fossem. É um registro que é mais meu, feito mais por mim. Pedi ao Jaquinho Morelenbaum para me ajudar, enquanto ele estava no Brasil - ele estava se preparando para sair em turnê - em algumas faixas, não apenas com os arranjos, mas também no estúdio e na produção. Ele está lá como co-produtor dessas faixas. Meu filho Moreno me ajudou em "13 de Maio". 

O Luiz Brasil me ajudou muito, com os arranjos e a escolha dos tons: ele foi o consultor musical para a finalização do disco depois que o Jaquinho partiu para a turnê. Contei muito com a ajuda de Moreno e Pedro Sá, porque eles entendem muito sobre o lado técnico da engenharia de som. 
Eles realmente entenderam o que eu queria alcançar, e eles tiveram sugestões para me aproximar disso, o que me faz sentir cada vez mais conectado a ele, como o autor de todos os sons neste álbum.
Caetano Veloso - Release do disco "Noites do Norte" - Nonesuch Records

Opinião da casa:

Um bom álbum, pouquíssimo ouvido e comentado. Não tem um hit, uma música que tenha tocado na rádio, nada. Mas é um ótimo disco com sonoridade envolvente e letras geniais como "Cantiga de boi" e "Zera a reza", com um rap anti-enganação religiosa no fim.
"Rock'n'Raul" inicia a troca de farpas entre Caetano e Lobão por conta do verso que diz "E o Lobo bolo". Lobão respondeu com a música "Para o mano Caetano" (no disco "Uma odisséia pelo Unverso Paralelo", 2001) e a última rixa do século foi até capa de revista.Foi eleita como single para promover o disco.
Aqui também tem "Ia", uma espécie de proto-Cê, a agressiva "Tempestades solares" e a reminiscência meio "Sampa" - coleção de memórias pessoais sobre a cidade -  de"Meu Rio".

Por fim, uma versão percussiva de "Sou seu sabiá", canção feita para Marisa Monte, que ganhou uma linda gravação no disco "Memórias, crônicas e declarações de amor" (2001).

Um comentário:

Anônimo disse...

Que site maravilhoso! Parabens pelo ótimo trabalho!