1997 - Livro


1. Os passistas
(Caetano Veloso)

2. Livros
(Caetano Veloso)

3. Onde o Rio é mais baiano
(Caetano Veloso)

4. Manhatã
(Caetano Veloso)

5. Doideca
(Caetano Veloso)

6. Você é minha
(Caetano Veloso)

7. Um Tom
(Caetano Veloso)

8. How beautiful could a being be
(Moreno Veloso)

9. O navio negreiro (excerto)
(Antonio de Castro Alves)

10. Não enche
(Caetano Veloso)

11. Minha voz, minha vida
(Caetano Veloso)

12. Alexandre
(Caetano Veloso)

13. Na Baixa Do Sapateiro
(Ary Barroso)

14. Pra ninguém
(Caetano Veloso)

Comentários:

 Às vezes penso que minha profissão tem sido perseguir Chico Buarque. Mas é uma perseguição amorosa. E tem dado tão bons resultados já faz tanto tempo, que desta vez, ao contrário do que aconteceu com "Você não entende nada" — música que nomeei "Sem açúcar" (parafraseando "Com açúcar, com afeto") porque à época julgavam haver entre nós uma rivalidade reles —, não temi pôr o nome "Pra ninguém" na canção que, como o "Paratodos" de Chico, lista virtudes de colegas. Chorei tanto quando Chico, em sua casa, me mostrou "Paratodos", que estava certo de nunca fazer nada para macular esse sentimento.
"Pra ninguém" surgiu — sem título — a partir da vontade irresistível de mencionar a gravação de Nana de "Nesse mesmo lugar" e, quase ao mesmo tempo, a de "Arrastão" por Tim Maia. Começou-se a insinuar uma lista que eu julgava impossível de pôr em música à medida em que ia fazendo exatamente isso. O título se impôs, apesar dos resquícios de supercuidado, porque ele, além de ecoar "Alguém cantando" ( "como que pra ninguém..." ), evidenciava o critério de eleições intransferivelmente pessoais, o que fazia da canção uma espécie de "festa íntima da música". A peça de Gabriel o Pensador me comove e exalta de modo semelhante à de Chico, embora em registro diferente. São grandes canções de
congraçamento. Já "Pra ninguém" é uma meditação sobre o mistério do cantar (não se cita ninguém cantando nada de sua própria autoria) e do ouvir cantar. E é uma avaliação extra-técnica e supra-crítica que, no entanto, conclui com a colocação crítica e tecnicamente correta de João Gilberto em seu posto. É o João Gilberto de quem sempre emanam idéias para repertório e para tratamento de material, das quais sempre se bebe sem sempre se dar o devido crédito. "Na Baixa do Sapateiro" aqui é literalmente tirada de sua versão violinística. E essa é sua razão de ser, de estar no repertório.

Reencontro algo de Chico em "Livros". Algo além do fato de termos os dois escrito livros. A composição é buarquiana como nenhuma outra minha, embora — lembrando outra vez Gabriel — surja ali uma espécie de Chico Buarque Science.
Insisto em que há Chico em "Os Passistas", aquelas "poses nos retratos" e alguma coisa mais. Embora as mesóclises sejam um capricho bem meu. E a melodia esteja mais perto do Ary de "Rio de Janeiro" por João Bosco. ( A canção é quase um remake de "Isso aqui o que é?".) Fiquei pasmo ao ler no livro "Duas meninas", de Roberto Shwarz, uma breve análise do estilo dos passistas de escola de samba que parece uma oposição simétrica à minha canção. Ou melhor: parece uma observação das mesmíssimas sutilezas julgadas com sinal de valor trocado.

Louco pra deixar Chico em paz, falo de "Manhatã", filha de uma cruza de Sousândrade com Lulu Santos (que merece mais do que a canção). Chico não está próximo da nossa (minha e de Lulu) visão de Manhattan. As referências aos produtores de Rythm'n Blues não seriam do interesse dele (embora a menos audível leitura, em "Livros", do trecho em que Julien Sorel, numa gruta da montanha, escreve um quase livro ao cair da tarde e o queima quando a noite vai terminar talvez o fossem). O desejo de combinar moderna percussão de rua baiana com sons cool sofisticados nasceu da reaudição dos discos de Miles Davis com Gil Evans e da "Baixa do Sapateiro" de João durante a excursão de Fina Estampa pela Europa. "Manhatã" foi onde isso mais claramente se realizou.

"Onde o Rio é mais baiano" é o samba que eu fiz para a Mangueira em agradecimento a ela ter-nos escolhido — Gal, Bethânia, Gil e eu — como enredo de seu desfile de anos atrás (Será que podemos parar de pensar em Chico?). Como em "Os passistas", o samba carioca tocado nos timbaus baianos ganha um timbre e uma alma diferentes. E quando passa para "samba reggae"...

Compus "Um Tom" perto do nascimento de meu filhinho mais novo. O belo nome que lhe demos (o mesmo de Tom Jobim, o mesmo de Tom Zé, o mesmo de Tom da dupla Tom e Dito, mas principalmente o nome dessa entidade musical, dessa instância da música) me sugeriu um cântico para ser acompanhado por percussão tonal. Aqui é em Milton que a gente começa a pensar. Eu queria ficar num tom só (com sexta e nona) e fazê-lo espalhar-se por sinos, berimbaus, gamelas, marimbas. Jaques Morelenbaum transformou essas idéias numa peça de grande beleza, como só ele poderia fazer.

"How beautiful could a being be?" Meu filho mais velho, Moreno, me deu de presente esse canto único, roda de samba de uma frase só, em que um inglês filosófico ("could a being be" parece trecho de Heidegger traduzido para o inglês) é usado para soar como um singelo e enigmático refrão africano. Moreno ainda trouxe sua voz pura, seu violão tenor, seus amigos maravilhosos (David Moraes e Daniel Jobim — que diz "HOW" — e Pedro Sá e Quito) e ainda Belô Velloso, Narinha Gil e Paulinha Morelenbaum para fazerem o coro feminino.

"Alexandre é pra parecer um daqueles Jorges de Benjor (com efeito Alexandre, o Grande é identificado com São Jorge em alguns lugares por onde passou em sua marcha para a Ásia), exaltado à maneira de Tieta (como nos blocos afro) mas com uma referência à homossexualidade misturada ao gênio militar que talvez pudesse se encontrar num épico de Renato Russo, nunca num de Jorge Benjor.

"Não enche" é uma homenagem a "Se manda", de Jorge Ben. Eu adoro essa canção de extravasar agressividade para com a mulher. Adoro canções assim. Todo homem tem desejo de poder gritar contra essa personagem que sempre diz (como na genial letra de Paula Toller) "longe do meu domínio cê vai de mal a pior".

"Doideca" inspirou-se nas conversas de Hermano Viana sobre a onda techno. É mais um exemplo de meu interesse em comentar o ar dos tempos. Sobretudo é um caso de "faking the fake": tudo acústico arremedando o eletrônico. A semelhança com as coisas de Arrigo é proposital: eu não queria fazer uma mera imitação de "jungle" ou "drum'n'bass" ou seja lá o que for: queria lançar um comentário sobre o interesse de quem produz esse tipo de música erudita moderna que os próprios consumidores de música erudita desprezam. Num desses casos, é impossível não pensar em Arrigo e em Zappa. Armei a "série" de doze sons e fiz com que ela se repetisse e se invertesse ou espelhasse. Claro que eu adoraria ouvir um longo remix de "Doideca" numa "rave", com a moçada das festas da Valdemente repetindo em coro "GAY Chicago negro alemão bossa nova GAY!". Mas, como em "Odara" — que nunca foi esquecida mas nunca entrou nas discotecas —, acho que vou me contentar com ter feito o comentário.

Gravar longos trechos de "O Navio Negreiro" significou reconsiderar o aspecto popular que esse belo poema retórico não pode perder. Com a percussão, ele volta vivo, claro, irresistível. Moreno me deu outro presente na forma desse canto de capoeira que ele aprendeu não sei onde — e que ficou deslumbrante no timbre do coro feminino que ele próprio tinha escalado para "How beautiful could a being be".

Fiz "Você é minha" pra Paulinha porque às vezes me surpreendo de ter tão perto de mim uma mulher tão imponente. Aí lembro que lhe disse essa frase quando ela ainda tinha uns quatorze anos. Jaquinho e eu reforçamos as semelhanças com "Você é linda" porque achamos graciosa a ilusão de que eu tenho um estilo próprio de canção de amor.

Assim como "Na Baixa do Sapateiro" é uma faixa do disco de "standards" brasileiros (um Fina estampa luso-americano) que venho sonhando e adiando, "Minha voz, minha vida" é uma faixa do disco de canções minhas de que gosto e que foram gravadas por outros, nunca por mim mesmo, com que também sonho e que também adio. Ambas são, no entanto, faixas legítimas deste Livro: a de Ary, pelo já dito sobre João Gilberto, a minha pelo irresistível efeito da combinação da percussão de rua com a composição cool e as cordas celestiais.

Mas o disco — que se chama "Livro" porque estou lançando um livro que quase não me deixou tempo para gravar, embora não tenha me impedido de chegar a um resultado sonoro em geral caprichado —, o disco é de Márcio Vítor (nem acredito!), Du e Jó, Gustavo de Dalva, Leo Bit Bit, Leonardo, Boghan, esses percussionistas baianos que encheram o estúdio de uma vibração quase insuportável de tão intensa; é de Carlinhos Brown, que armou o "Navio Negreiro" pra mim e indicou — um por um — esses seus brilhantes discípulos; é de Beta, que veio com a sua majestade e trouxe emoção ao trecho do poema de Castro Alves como eu não poderia; é de Luiz Brasil, que escreveu arranjos de metais tão complicados de executar quanto ricos em imaginação; é de Marcelo Martins, que fez os sopros fluírem tão elegantemente em "Os passistas" que o disco abre com extrema gentileza; é de Moogie, que, embora tivesse às vezes de ir a Los Angeles (e depois tenha me levado para aquele estranho local para mixar as faixas), soube sempre descobrir e inventar sonoridades originais e eficazes; é de Marcelo Costa, que organizou o falso falso de "Doideca" e o maracatu de "Livros"; é de Pedro Sá, que com sua guitarra, fez de "Livros" uma província proguessista da Nação Zumbi; é de David Moraes, esse grande músico, que trouxe ao samba de Moreno toda a riqueza que o autor esperava e algo mais; é de Jorge Helder, Zeca Assunção, Fernando, Dadi; é dos músicos todos, cordas e sopros; de Ramiro com seus berimbaus afinados e sua precisão absoluta; finalmente é de Jaques Morelenbaum, que fez do meu sonho de grande banda cool uma realidade em "Manhatã", e de minhas idéias para "Um Tom", uma peça muito sua que é uma pequena obra-prima. Além de ter feito tudo o mais.
Caetano Veloso - Release do Disco "Livro", 1997
Opinião da casa:

(Enfim, chegamos a ele...)
Não entendo a crítica brasileira ter desdenhado dele. Talvez daqui a 30 anos seja reconhecido pelo que é: o auge de Caetano como compositor, músico e cantor.
Sendo direto: não tem tempo ruim aqui. Apesar de ser um disco de canções variadas, há uma sequência que faz com que ele tenha sentido e se amarre bem.
Destaque para a bela abertura de "Os passistas" (relida belamente por Jussara Silveira e Luiz Brasil em "Nobreza", 2006), "Livros","Manhatã" e o hit "Não enche".
"Onde o rio é mais baiano" é o agradecimento a Mangueira que fez dos Doces Bárbaros tema do desfile de 1994, foi regravada por Bethânia em 95 em seu "Ao vivo".
"Minha voz, minha vida", feita pra Gal , tem boa releitura do compositor, que por sua vez, refaz "Na baixa do sapateiro", em versão de pura reverência a João Gilberto.

Tem tudo isso e... é meu disco favorito de Caetano. 

6 comentários:

Renys disse...

Também considero esse o melhor trabalho de Caetano. A riqueza, a variedade e - claro - a qualidade das composições são realmente superlativas. Um desses raros discos que nunca cansam.

Obrigado por postá-lo, e obrigado também por ter criado esse blog!

Unknown disse...

Quem estiver com dificuldades em baixar,é só copia e colar o link na barra de endereço e enter.Vai aparecer o endereço do site 4shared,é só entrar e baixar.

Airton disse...

Link Quebrado

JOÃO PAULO disse...

Não vejo o link???

JOÃO PAULO disse...

o link???

Anônimo disse...

Muito bom! Excelente trabalho!